O FAROL

Por Eduardo Rego

“O Farol” era a designação que o nosso coreto, localizado no centro da Praça Costa Rego, adquiriu a partir de determinada época.

Nunca vi referência à época da sua construção, mas presumo que terá sido em meados do século XIX, principalmente pela história das filarmónicas, pelo momento em que apareceram no contexto de festas e romarias. Naturalmente que terá sido construído exatamente por esta necessidade: local para atuação das bandas filarmónicas nas festas da Senhora da Guia.

O jornal “Voz da Graça” de Novembro de 1987 reproduz uma notícia sobre a Festa da Guia de 1885, sob o título “Já foi há 102 anos!”. Neste artigo refere-se que:

– “Foi extraordinária a concorrência de fiéis romeiros, vindo muitos deles das mais remotas terras do nosso país. Admirável … a piedade, a devoção das 14.000 pessoas(!), umas após outras, em volta dessa coluna majestosa – a VIRGEM – em cuja contemplação absorto, o verdadeiro crente se esquece de tudo quanto é mundano. (…)”

-“Na sexta feira, às 11 horas da manhã, deu entrada a digna Filarmónica do Espinhal. (…) À noite houve Ladainha de Nossa Senhora cantada a grande instrumental. (…) No sábado às 11 houve missa solene cantada a grande instrumental. Agradou muito assim no gosto como na execução, apesar dos seus dois anos de existência. (…) Finda a procissão, terminou a festa religiosa deste dia.

À noite, houve fogo de artifício e iluminação no coreto e pavilhão do mesmo, no qual até alta noite, esteve tocando a filarmónica executando magnificamente muitas peças do seu repertório variado e de bom gosto.”

Outra banda que muitas vezes abrilhantou as nossa festas, a filarmónica Penelense, foi fundada em 1858, sendo uma das mais antigas da nossa região. A data da fundação desta banda e a data da fundação da banda do Espinhal (1883) vem ao encontro da minha opinião acerca da data da construção do nosso coreto.

O nosso coreto apresentava uma sobriedade excessiva, ou pobreza evidente, isto se comparado com outros coretos da região. E lembro-me do coreto de Alvaiàzere. Talvez muito mais recentes que o nosso coreto, os coretos que proliferaram em determinadas décadas pelas vilas de Portugal, eram bem mais imponentes e normalmente com coberturas fixas.

Este coreto foi o habitat natural da Sociedade Filarmónica Avelarense durante meio século e das bandas que nos visitaram, seguramente durante mais de um século! Aqui brilhou a banda da Filarmónica Avelarense, em especial nos anos em que foi liderada pelo maestro Mário Rosa. Este coreto contribuiu também para a fama dos solos deste maestro. Regia com uma das mãos e tocava trompete com a outra!

Nas festas de Nª Senhora da Guia o coreto era engalanado com uma exuberante cobertura que lhe dava um aspeto muito mais monumental e festivo. As bandeiras, o colorido destas e da própria cobertura eram uma das marcas das nossas festas. A colocação da cobertura do coreto e da estrela gigante que encimava esta cobertura, era um dos pontos altos da preparação para a festa.

Numa das fotos antigas das nossas festas, propriedade da Santa Casa de Nossa Senhora da Guia, do ano de 1891, encontra-se escrito na sua legenda: “Vista do arraial … com o lindo coreto de música ornamentado como se encontra nas festas”. Daqui se pode concluir que, nesta altura, o nosso coreto ainda não se chamava “Farol”. Como provam várias outras fotos antigas, a cobertura do coreto também só era colocada para as festas.

Então porque se terá passado a chamar “Farol” e desde quando?

Da tradição oral sabe-se que em época imprecisa a cobertura serviu para a instalação de uma iluminação a carbureto durante as Festas de Nª Senhora da Guia. Falava nisto o Sr. Raul Silva (Raulito) e ouvi eu algumas vezes, na minha juventude, quando era “aviador” na loja do sr. Manuel Fernandes da Silva. (uma das maiores casas comerciais do Avelar localizada no prédio da Virinha, na esquina junto à Farmácia Medeiros; aqui colaborei alguns anos no atendimento ao público, a aviar, por isso ter sido aviador! Este edifício foi demolido nos anos 80 tendo no local sido construído o edifício das arcadas que tem algumas semelhanças com o anterior).

Voltando ao carbureto. Segundo as minhas pesquisas, trata-se de um composto químico sintetizado pela primeira vez em 1888. De nome científico Carbeto de Cálcio, era popularmente designado por carbureto de cálcio ou apenas carbureto. Este composto é produzido em fornos de alta temperatura a partir de uma mistura de cal e carvão; o seu principal uso industrial tem sido a produção de acetileno, um gás. As pedras de carbureto quando colocadas em água produzem um gás, o etino, vulgarmente conhecido por acetileno. Este gás teve importância na indústria metalomecânica em processos de soldagem (solda oxiacetilênica). Outra aplicação deste gás foi na iluminação. Ainda hoje, em algumas paragens do mundo, se usam lanternas de acetileno na exploração de grutas, cavernas ou minas.

Tudo leva a crer que no nosso coreto tenha sido instalado, na parte inferior onde também funcionava uma tasca ou taberna, um sistema de produção deste gás que seria transportado por tubagem adequada até ao limite da cobertura do coreto; aqui estariam colocados bicos de combustão, em todo o perímetro da cobertura, que em funcionamento proporcionariam a mais significativa iluminação da praça. Desta realidade terá surgido a comparação com os faróis e, para o povo, o nosso coreto passou a chamar-se “O Farol”.

Atendendo a que o carbureto foi sintetizado pela primeira vez em 1888 e sabendo-se que as aplicações de qualquer produto demoram alguns anos a aparecer; sabendo-se que para estas aplicações é necessário a criação de instrumentos/equipamentos adequados; tendo em conta a localização do Avelar e o seu desenvolvimento social e económico, eu presumo que a iluminação a carbureto no nosso farol terá funcionado uma década ou duas na melhor das hipóteses. Na minha opinião este sistema de iluminação terá chegado ao Avelar já no século XX (quem sabe já depois da implantação da república) e a partir de 1922 a nossa terra sofreu algumas convulsões decorrentes do fim da cerimónia do bolo e de um período de conflito com a Hierarquia da Igreja Católica que levou à Excomunhão da Terra (Cisma). António Pais no seu livro “O Meu Avelar” cita uma notícia de 15/07/1933, do jornal “Novo Horizonte”, em que se refere que a Câmara Municipal aprovou verba para a iluminação pública, a petróleo, da vila de Avelar, grande aspiração da terra. Neste mesmo jornal é publicado um conjunto de versos intitulado “A Luz” e, tanto na notícia como nos versos, não há referências ao carbureto, o que acho significativo.

Curiosamente, o último conjunto de seis versos é:

“Ouvi há dias contar, / E não há que duvidar, / Que vamos ter PETROLINO… / Vai ser tudo iluminado. / Com grande zêlo e cuidado, / Ó Rosa … toca lá o hino!…”

Este “Rosa” referido no último verso é, nada mais nada menos, o maestro da Filarmónica Avelarense, Manuel Rodrigues Rosa, pai do maestro Mário Rosa.

Portanto a iluminação a carbureto, instalada no nosso coreto exclusivamente no período das festas, talvez tenha funcionado de meados da primeira década do Séc. XX até meados da terceira década. O fim da sua utilização poderá também estar relacionado com a perigosidade de um gás inflamável, com os incipientes meios de controlo e segurança para a sua utilização e com alguns eventuais inconvenientes para a saúde humana e, possivelmente, com o aparecimento da iluminação a petróleo. Para além da iluminação a azeite, popularizaram-se os candeeiros a petróleo, também conhecido por Petromax.

O “Farol” foi demolido em 1966 para as obras de requalificação da Praça, que levaram à construção do Ringue de Patinagem, polidesportivo que ocupou a parte central da praça.

Nos anos 80, era presidente da Junta de Freguesia o Sr. José de Azevedo Carreira, houve uma tentativa de “reconstruir” o farol. Construiu-se uma réplica deste na parte de cima da praça, mais ou menos ao meio. Apesar de se ter tido a preocupação de redimensionar a construção para as dimensões das bandas atuais, este novo farol não teve grande sucesso. Por várias razões: pela localização que perdeu a centralidade; por falta de condições para que o público assistisse às atuações da filarmónica; porque havia um palco maior, permanente e mais acessível, à esquina da Praça em frente ao forno e, sobretudo, a este novo farol sempre faltou o mais importante, uma cobertura, igual ou semelhante à do outro farol, que potenciasse a acústica das atuações da banda. A cobertura de um palco é fundamental para esta atividade.

A Filarmónica Avelarense ainda atuou algumas vezes neste coreto, poucas, e enquanto existiu, a sua parte inferior serviu essencialmente de arrecadação e/ou bar de apoio às atividades desportivas que se realizavam no ringue e às festas que se realizavam na Praça. Este coreto foi demolido quando se realizaram as obras de requalificação da praça que lhe deram a configuração atual.

(Abr 22)